Anatomia normal de uma Orelha

A anatomia de superfície da orelha é complexa, com elevações e depressões responsáveis pelo seu contorno característico. Os componentes principais da orelha são: helix (curvatura maior e mais externa), anti-helix (elevação interna que se ramifica em cruz superior e cruz inferior), escafa (que é a fossa entre a helix e a anti-helix), concha (cartilagem que forma a base da orelha), CAE (conduto auditivo ou meato auditivo externo), tragus (muito usado na cirurgia de face) e uma estrutura oposta ao tragus, chamada de antitragus. O lóbulo da orelha localiza-se inferiormente e não possui cartilagem.

Anatomia de superfície da orelha com os elementos principais que caracterizam seu contorno.

Embriologia básica da Orelha

A orelha começa a ser formada em torno do 2° mês de gestação, a partir de 6 projeções mesenquimais, chamadas tubérculos ou brotos embrionários, que surgem no 1º e no 2º arcos branquiais. As 3 projeções no arco mandibular (1º arco), ou brotos 1, 2 e 3, vão formar o tragus, a raiz da helix e o 1/3 proximal da helix. Já as 3 projeções do arco hióideo (2º arco), brotos 4, 5 e 6, correspondem à formação dos 2/3 distais da helix, da anti-helix, do antitragus e do lóbulo.

Esquema da formação da orelha a partir dos brotos embrionários do 1º e do 2º arcos branquiais

Sobre a reconstrução de Orelha

A reconstrução da orelha pode ser necessária quando há um defeito congênito de sua formação ou quando a orelha era normal, mas sofreu algum tipo de trauma que alterou sua conformação natural.

A reconstrução total da orelha com tecido autógeno (do próprio paciente) representa um desafio técnico para o cirurgião, pois a anatomia complexa da orelha com curvaturas de cartilagem elástica delicada cobertas por um envelope fino de pele é muito difícil de se reproduzir cirurgicamente.

Ao longo dos anos, diversos cirurgiões forneceram inúmeras contribuições para o desenvolvimento da técnica de reconstrução de orelha. A maioria dos autores dividem a reconstrução de orelha em múltiplos estágios, realizando a reconstrução usualmente em 2 ou 4 tempos operatórios, conforme a técnica selecionada. Essa divisão decorre da complexidade da anatomia de superfície da orelha e também da necessidade de se recobrir com pele os dois lados (anterior e posterior) da orelha reconstruída, para que ela possa ser liberada da cabeça, mimetizando a projeção do lado contra-lateral normal.

O uso de material sintético

Desde 1966, quando Cronin introduziu o uso de um arcabouço de silicone para reconstruir a orelha, diversos outros materiais foram também desenvolvidos e testados. Entre eles, pode-se citar o polietileno poroso (Medpor®), tela de nylon, de Marlex, de poliéster e de Teflon. Todos esses implantes inorgânicos, no entanto, constituem corpos estranhos que quando colocados sob uma pele fina e vulnerável tendem a levar a complicações tardias, como altas taxas de infecção, necrose da pele e extrusão do material, mesmo quando se utilizam retalhos fasciais para sua cobertura.

Esse risco elevado de exposição do material e infecção local fez com que o uso de material sintético para a reconstrução de orelha fosse contra-indicado. A cartilagem costal autógena esculpida permanece o material mais confiável que produz os resultados com o menor número de complicações a longo prazo, sendo ainda a fonte mais substancial para a fabricação de um arcabouço auricular total.

Qual a idade ideal para realizar uma reconstrução de orelha em criança?

Apesar da ansiedade dos pais e da própria criança, a orelha não deve ser operada antes dos 7 anos de idade. Antes desse período, a orelha ainda se encontra em crescimento e qualquer tentativa de reconstrução não vai ser precisa em mimetizar o tamanho definitivo que a orelha ainda vai alcançar.

Quando a cirurgia envolve a reconstrução total ou quase total da orelha, envolvendo a criação dos seus vários relevos, a reconstrução normalmente é realizada após os 9-10 anos de idade, dependendo da altura e do desenvolvimento corporal da criança. Dessa forma, garante-se que não apenas a orelha terá atingido seu tamanho final, como também o grau de desenvolvimento do tórax será maior, permitindo a retirada de quantidade suficiente de cartilagem doadora.

Função auditiva

Em casos de malformação da orelha, como por exemplo nas microtias, os pais estão geralmente preocupados com a questão da audição. Eles acreditam que a criança seja ou completamente surda do lado afetado ou que a audição possa ser restabelecida simplesmente realizando um orifício na pele.

É importante esclarecer que o sistema auditivo é complexo, constituído pelas orelhas externa, média e interna e pelas vias auditivas no sistema nervoso central. De fato, nas microtias o canal auditivo pode estar parcialmente ou até completamente ausente e ainda que o nervo auditivo seja normal, a condução sonora pode estar diminuída, prejudicando a função auditiva.

Sistema auditivo com seus componentes externo, médio e interno.

No entanto, como o ouvido interno (receptivo) é derivado de um tecido embriológico diferente do tecido da orelha externa e média (porção condutiva), o ouvido interno raramente é envolvido (apenas 10% dos casos) e os pacientes apresentam pelo menos alguma audição no lado afetado. O problema está na condução, que está bloqueada pela malformação do complexo médio e externo da orelha.

No caso de ambas as orelhas estarem afetadas por microtia e ambos os canais estarem ausentes, a audição deve ser assistida por um aparelho auditivo.

Quando apenas uma orelha é afetada, a função auditiva pode ser próxima do normal, mas não é estereofônica. A reconstrução cirúrgica do canal auditivo e do tímpano geralmente leva a resultados desapontadores. Pode ser aconselhável, em casos de função auditiva pobre, colocar um Aparelho Auditivo Ancorado ao Osso (ou Bone-Anchored Hearing Aid – BAHA), mas o local de sua implantação deve ser muito bem planejado para que não prejudique uma possível reconstrução de orelha.

Esquema de funcionamento e implantação de um aparelho auditivo ancorado ao osso (BAHA).

Anaplastologia

A anaplastologia é a ciência que estuda a reconstrução de segmentos do corpo humano com próteses estéticas de silicone para pacientes que tenham perdas corporais causadas por traumas, malformações congênitas ou pacientes oncológicos.

Embora o melhor tratamento para reconstruir uma orelha ainda seja a reconstrução autóloga com cartilagem costal, em alguns casos extremos não encontramos condições locais para realizar uma reconstrução de orelha. Isso se dá principalmente em casos de queimaduras graves ou ressecções extensas de tumores, com perda total ou quase total da orelha, em que a pele remanescente também se encontra comprometida, prejudicando a cobertura cutânea necessária para um arcabouço de cartilagem.

Dessa forma, quando não há possibilidade de reconstrução cirúrgica, a colocação de uma prótese externa implantável pode ser uma alternativa satisfatória para restabelecer a anatomia e estética local.

DEFORMIDADES CONGÊNITAS

Todas as malformações congênitas que cursam com alterações do 1º arco (mandibular) ou do 2º arco (hióideo) branquial podem cursar com deformidades de orelha associadas.  A deformidade congênita mais comum que necessita de reconstrução de orelha é a microtia, que pode ser isolada ou fazer parte de alguma síndrome craniofacial.

O que é Microtia?

Microtia significa literalmente “orelha pequena” (micro=pequeno, otia=orelha). Designa a malformação de orelha que acomete o pavilhão auricular, podendo apresentar variadas alterações de seu tamanho e forma.

Apresenta uma incidência aproximada de 1 para cada 6000 nascimentos. Tem uma herança multifatorial na grande maioria dos casos, existindo um fator familiar associado em apenas cerca de 5% dos casos. É duas vezes mais frequente em meninos que em meninas e a razão de acometimento do lado direito, do lado esquedo e do acometimento bilateral é de 6:3:1.

Na maioria dos casos, o lóbulo é deslocado superiormente em relação ao lado oposto normal, embora ocasionalmente uma migação incompleta da orelha deixe o lóbulo em uma posição inferior. Cerca de 1/3 a metade dos pacientes com microtia apresentam características de microssomia hemifacial (discutida em outro tópico).

Esquema e exemplo clínico de uma microtia à direita.

Etiologia

Alguns autores acreditam que a causa do desenvolvimento de deformidades auriculares resultaria de uma isquemia tecidual intra-útero. Isso fala a favor da deformidade surgir a partir de um problema durante o desenvolvimento fetal e não de uma causa hereditária. De fato, podemos encontrar pacientes com microtias cujo irmão gêmeo idêntico apresenta orelhas normais.

O uso de algumas drogas, como talidomida, isotretinoína e ácido retinóico, no primeiro trimestre de gestação também pode ser responsável por casos de microtia.

Técnica cirúrgica atual

Independente da natureza da condição ou do defeito, o objetivo básico da cirurgia é tentar reconstruir os contornos de uma orelha normal. Como a orelha tem uma forma complexa, um arcabouço cartilaginoso de suporte firme precisa ser usado para que os contornos possam ser reproduzidos de forma adequada.

Atualmente, a técnica de reconstrução da orelha que utilizamos é realizada em dois tempos, segundo proposto por Nagata e modificado por Firmin. Essa divisão da cirurgia em dois tempos se dá principalmente porque em geral não é possível cobrir os dois lados do arcabouço cartilaginoso com a pele da orelha deformada. Por conta disso, um enxerto de pele é usado no segundo tempo da cirurgia para poder soltar o arcabouço da cabeça e criar o novo sulco retroauricular.

Costuma-se esperar de 4 a 6 meses, no mímino, entre a primeira e a segunda cirurgia, para que a pele esteja totalmente adaptada ao novo arcabouço e o arcabouço bem integrado ao organismo, o que permite a liberação em sua face posterior e colocação da pele necessária para confeccionar o neosulco.

Alguns retoques e cirurgia menores complementares podem ser necessários para melhorar os relevos da nova orelha, bem como realizar a pefuração do arcabouço na região do lóbulo para permitir o uso de brincos.

Primeiro tempo

O primeiro estágio de uma reconstrução de orelha corresponde à retirada de cartilagem costal e a confecção de um arcabouço cartilaginoso que vai mimetizar os relevos de uma orelha normal.

Normalmente realizamos uma incisão na região costal do mesmo lado da orelha acometida, medindo de 6 a 8cm posicionada de forma oblíqua. A retirada das cartilagens costais não causa deformidade torácica significativa e não pode ser usada como justificativa para não se indicar a cirurgia.

Após a confecção do arcabouço, ele é posicionado sob a pele da região auricular do lado afetado. Drenos de aspiração contínua são colocados na região auricular. Um pequeno fragmento de cartilagem costal é  separado e colocado de volta sob a pele da região costal para ser utilizado no segundo tempo como suporte para a elevação do arcabouço cartilaginoso. A região costal geralmente não necessita ser drenada.

Esquema da retirada de cartilagem costal para confeção do arcabouço cartilaginoso
Exemplo de um arcabouço de orelha reconstruído a partir de cartilagem retirada da costela

Segundo tempo

O segundo estágio da reconstrução da orelha corresponde à elevação do arcabouço cartilaginoso, liberando o complexo auricular da cabeça com a recriação do espaço atrás da orelha. Esse espaço atrás da orelha é chamado de sulco retro-auricular.

O intervalo entre as duas cirurgias varia de 4 a 6 meses, dependendo da situação específica do paciente.  Durante a primeira cirurgia, a cartilagem costal é retirada e esculpida e colocada abaixo da pele. Assim que esse primeiro tempo for realizado, todos os contornos da orelha vão ser reproduzidos, mas não vai haver espaço atrás da orelha. Quando vista de perfil, a orelha reconstruída parace ser normal, mas ela não se projeta da cabeça como a orelha normal. A criação do sulco retro-auricular durante o segundo estágio da cirurgia é realizada inicialmente com a liberação do arcabouço cartilaginoso. Em seguida, o fragmento de cartilagem costal guardado sob a pele na região torácica é retirado e utilizado como suporte para manter a projeção do arcabouço liberado. Nesse momento, pode ser feita uma revisão da cicatriz da região torácica caso seja necessária. É retirado, então, um enxerto de pele para cobertura da região posterior do complexo auricular.

A liberação do complexo auricular nos permite assegurar que a projeção de ambas as orelhas vai ser semelhante quando vistas de frente.

Quais os riscos e complicações possíveis de uma reconstrução de orelha?

Todo procedimento cirúrgico envolve riscos e possíveis complicações e as cirurgias para reconstruir uma orelha não estão isentas dessas variáveis.

Alguns fatores não são considerados complicações, embora causem uma limitação transitória para a criança. Entre esses fatores, destaco a dor torácica relacionada à retirada de cartilagem das costelas, levando a um afastamento obrigatório de atividades físicas por um período variável de 4 a 6 semanas.

Entre as complicações da reconstrução de orelha, destaco: pneumotórax (entrada de ar no espaço pleural por lesão da pleura parietal – externa – durante a retirada da cartilagem costal), perda do arcabouço cartilaginoso por causa de infecção, necrose dos retalhos de pele e hematoma. A perda em grau variável do contorno do arcabouço cartilaginoso pode ocorrer ainda como consequência de reabsorção da cartilagem e/ou retração cicatricial da pele que recobre a cartilagem.

Outras condições associadas a malformação congênita da orelha

Microssomia hemifacial

Quando há uma deformidade de orelha acompanhada de crescimento anormal (geralmente um lado cresce menos que o outro) da mandíbula, resultando em assimetria facial. A microssomia hemifacial é discutida mais detalhadamente em outro tópico do site.

Síndrome de Goldenhar

Somada às alterações que ocorrem na microssomia hemifacial, há ainda uma anomalia nos olhos, geralmente um coloboma palpebral. Trata-se de uma apresentação clínica mais grave de microssomia hemifacial.

Síndrome de Treacher Collins

Quando há defeitos faciais específicos, envolvendo a órbita, os malares, a maxila e a mandíbula, com microtia geralmente bilateral. A Síndrome de Treacher Collins é discutida mais detalhadamente em outro tópico do site.

Deformidades Faciais Complexas

Quando a microtia é apenas uma de várias deformidades da face e às vezes do crânio, como por exemplo, nas fissuras raras de face. As fissuras raras da face são discutidas em outro tópico do site.

Defeitos Menores

Quando a orelha está presente, porém de forma anormal. Pode ocorrer alteração da curvatura, forma e tamanho da helix, ou outras áreas específicas da anatomia do pavilhão auricular.

Deformidades de orelha adquiridas ou pós-traumáticas

Ocorrem após acidentes ou cirurgias, com amputações parciais a totais da orelha. Geralmente se associam a ferimentos cortantes (acidentes com facas, por ex.) , ressecções tumorais, mordeduras de animais ou até mesmo mordedura humana (em brigas, por ex.) e queimaduras.

Lesão parcial

Lesão parcial do pavilhão auricular, normalmente acometendo parte da helix e antihelix, em maior ou menor extensão. Pode, algumas vezes, ser reconstruída com retalhos locais da própria orelha remanescente, porém nesses casos invariavelmente vai reduzir o tamanho global da orelha.

Lesão total ou quase total

Avulsão ou arrancamento de toda ou quase toda a orelha. Geralmente difícil de reconstruir, exige a confecção de todo o molde cartilaginoso. A condição da pele remanescente na região auricular vai determinar a viabilidade da reconstrução.

Lesões que podem se extender para tecidos adjacentes à orelha

Algumas lesões como queimaduras e sequelas de radioterapia podem extender seu acometimento à área do pavilhão auricular. Em casos graves, quando a pele da região auricular não apresenta condições de receber um arcabouço cartilaginoso, a reconstrução de orelha é contra-indicada. Nesses casos, pode-se optar pelo uso de próteses externas implantáveis, feitas sob medida para o paciente. Ver o tópico Anaplastologia, localizado anteriormente nesta página.

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